quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A abulia e o tédio

"Álvaro de Campos caracteriza-se, essencialmente, nesta última fase, pela sua faceta anti-social (à maneira romântica), pelo desprezo pelo burguês, o lepidóptero, e pela renúncia à sociedade materialista, marcada por comportamentos  estereotipados, cujos valores caducos o poeta contesta, numa revolta veemente, assumindo-se como um dândi, sempre pronto a provocar, a chorar os seguidores da ordem estabelecida, causando escândalo. O poeta escreve, exprimindo a rejeição dos cânones estabelecidos.
Campos recusa a acção, não se insere no sistema social que o envolve e grita a sua diferença de uma forma pungente, reivindicando para si mesmo a condição daquele que "não nasceu para isso", aquele que tem consciência de que entre o seu "eu" e os outros existe um abismo intransponível.
[...]
Este heterónimo de Fernando Pessoa é amoral, isto é, situa-se para além daquilo que é moral ou imoral, geralmente, afasta-se dos seus semelhantes (a sua aproximação em relação aos outros deve-se, segundo Pessoa, ao seu desejo de proporcionar a si mesmo diferentes sensações).
A fluência jorrante, manifestada em versos tempestuosos, exprime muitas vezes, a dor de uma solidão assumida e desejada, um tédio imenso perante a vida, um cansaço atroz perante a existência.
As elocuções febris traduzem um cepticismo sem remédio e não excluem uma saudade viva da infância, de um  tempo anterior, em que o poeta sente ter tido um espaço, para sempre perdido.
[...]
Inadaptado em relação ao universo moderno que exaltou nas odes futuristas, Campos revela a solidão originada pela consciência da diferença e da sua assunção através de uma angústia existencial que "Transbordou da vasilha" e que lhe provoca "mal-estar a fazer-[lhe] pregas na alma!". O cansaço de existir enquanto ser fragmentado, a nostalgia de uma infância "feliz e[m que] ninguém estava morto", o tédio da própria vida consubstanciam-se no poema "Là-bas, je ne sais où..."
[...]
O tédio e o niilismo aproximam os poemas da última fase da produção poética de Álvaro de Campos da poesia ortónima. Encontramos agora um Campos dominado pelo cansaço (cf. poema "O que há em mim é sobretudo cansaço"), pela nostalgia da infância, tempo arquetípico e mítico da felicidade perdida que se opõe ao presente e à consciência da ausência de amor, ao sentimento de abandono e à tristeza profunda.
[...]
O pessimismo da fase abúlica de Álvaro de Campos culmina no tédio imenso e na náusea irremediável que provoca a existência do poeta, exilado da alegria sonhada da infância e agrilhoado no tempo presente, conotado com a perda e com a infelicidade."

Fonte: Análise de poemas Fernando Pessoa Ortónimo e Heterónimos, Conceição Jacinto, Gabriela Lança, Porto Editora

Sem comentários:

Enviar um comentário