segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Oficina de escrita

Num texto expositivo-argumentativo que contenha entre 150 e 200 palavras e evocando a tua experiência de leitura, comenta a seguinte afirmação:
"Se a poesia de Álvaro de Campos é, em muitos casos, o lugar de encenação de um febril entusiasmo modernista (na mais literal acepção do termo), ela acaba também por conduzir a estados de espírito em que a desencanto e o tédio são dominantes (...)."

Carlos Reis (coord.), in Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, UA, 1990

Álvaro de Campos, análise global

"Engenheiro naval “franzino e civilizado”, o mais fecundo e versátil heterónimo de Fernando Pessoa, é também o mais nervoso e emotivo, por vezes até à histeria.

Com algumas composições iniciais que algo devem ao Decadentismo(“Opiário”,por exemplo), Álvaro de Campos é, sobretudo, o futurista da exaltação da energia até ao paroxismo, da velocidade e da força da civilização mecânica do futuro, patentes na “Ode Triunfal”, e o sensacionista que pretende “sentir tudo de todas as maneiras”, ultrapassar a fragmentaridade, numa “histeria de sensações”, seja em movimento centrífugo de busca do não-eu, seja numa concentração centrípeta de evocação da infância e do quotidiano, e atingir o Todo(“OdeMarítima”).

É uma fase eufórica, baseada numa concepção não aristotélica da arte, isto é, numa estética baseada na ideia de Força.

Sendo o heterónimo que revela uma nítida evolução, Álvaro de Campos surge-nos, numa última fase, como o poeta do cepticismo, da abulia perante o absurdo, da auto-análise, do cansaço, e da frustração, muito próximo de Pessoa ortónimo.

Fica-nos a sensação, lidas as Odes com atenção, que o sensacionismo foi uma “fuga para a frente”, uma tentativa antecipadamente tida como frustrada e frustrante, de vencer o tédio, matar o absurdo, decifrar o enigma da existência, ser todo e ter tudo. É altura de revermos a estrofe final da “Ode Marítima”e atentarmos nos extractos seguintes, entre muitos que poderíamos citar:


a) “Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho

Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro

Do comboio definitivo…

Quero neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,

Estar ainda um bocado agarrado à velha vida”.

(“Lá-bas, je ne sais où”)



b) “Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

(…)

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! ...”

(“Aniversário”)


O estilo de Álvaro de Campos futurista e sensacionista é nervoso, pujante, torrencial, de verso livre, os períodos são longos e a ordenação das palavras aparentemente caótica, com recurso frequentíssimo à repetição, à anáfora, à onomatopeia, à metáfora e à comparação. E tudo isto enriquecido por um universo simbólico e um jogo de conotações e ambiguidades altamente expressivos.

Na sua última fase, os períodos perdem o seu longo fôlego, a linguagem perde toda a sua violência e densidade, como seria de esperar."
Texto crítico
"Poeta sensacionista e por vezes escandaloso (qualificativos da carta de Pessoa a Casais Monteiro, já citada), Campos é o primeiro a retratar-se e a referir circunstâncias biográficas, o que reforça a simulação e daria ao próprio Fernando Pessoa estímulos para se manter na pele do heterónimo. Descreve-se “de monóculo e casaco exageradamente cintado”, “franzino e civilizado”, “pobre engenheiro preso / A sucessibilíssimas vistorias”. Escreve, febril, “à dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica”, ou, no seu cubículo, ouvindo o “tic-tac estalado das máquinas de escrever”.

Dos vários heterónimos é aquele que mais sensivelmente percorre uma curva evolutiva. Tem três fases: a do “Opiário”, poema com a data fictícia de 3-1914; a do futurismo whitmaniano, exuberantemente documentada na “Ode Triunfal” (4-1914), em “Dois excertos de odes” (30-6-1914), “Ode Marítima” (publicada no nº 2 do Orpheu, 1915), “Saudação a Walt Whitman” (11-6-1915) e “Passagem das Horas” (22-5-1916), para só episodicamente assomar em poemas posteriores; enfim, uma terceira fase a que chamarei pessoal por estar liberta de influências nítidas, desde “Casa branca nau preta” (11-10-1916) até 1935, no ano da morte de Pessoa.

O “Opiário”, com efeito, é um poema decadente. Pessoa escreveu-o de propósito para o nº 1 do Orpheu em Fevereiro ou Março de 1915 e datou-o de Março de 1913 para documentar, mistificando, uma primeira fase de Campos, ainda “em botão”. Campos tê-lo-ia concebido no decurso de uma viagem ao Oriente. Dedicado “ao Senhor Mário de Sá-Carneiro”, imita-lhe desde a nostalgia de além, a morbidez snob de um saturado da civilização, a embriaguez do ópio e dos sonhos de um Oriente que não há, o horror à vida, o realismo satírico de certas notações, até ao vocabulário entre precioso e vulgar, às imagens, aos símbolos, ao estilo confessional brusco, amimado e divagativo, ao ritmo dos decassílabos agrupados em quadras. “Era o que Pessoa pretendia, ao mesmo tempo que deixava transparecer aqui ou ali a personalidade latente de Campos: a fome de um mundo de sensações novas, as sangrentas “visões cadafalso”, o desejo de “ser as coisas fortes”, o ódio à honestidade burguesa, à douceur de moeurs, como ele dirá na “Ode Marítima”:


Pudesse a gente desprezar os outros

E, ainda que co’os cotovelos rotos,

Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!"


"Compreende-se que este Álvaro de Campos que desponta – o da segunda fase – com a sua vitalidade transbordante, o seu amor ao ar livre e ao belo feroz, venha a condenar a literatura decadente, planta de estufa corrompida, em cujos pecados, como o Fernando Pessoa ortónimo, incorreu: fá-lo-á ao defender uma estética aristotélica baseada não já na ideia de beleza, no conceito de agradável, em suma, na inteligência, mas sim na ideia de força, na emotividade individual pela qual o escritor subjuga os outros sem procurar captá-los pela razão.

Publicados na revista Athena em 1924, estes “Apontamentos para uma estética não aristotélica” esclarecem o que Álvaro de Campos já era, como poeta emotivo e sensacionista, em 1914. Grassava então, nos meios literários avançados, o entusiasmo por uma poesia que espelhasse a civilização industrial da época. Em França e na Itália, Marinetti divulgara a partir de 1909 os princípios basilares do futurismo: luta sem quartel às tradições, à cultura feita; exaltação dos instintos guerreiros; apologia de um novo Homem protótipo isento de sensibilidade, saudável, amoral, dominador, livre de todas as peias. Na arte, o futurismo daria pela cor, pelo som ou pela palavra “a própria sensação dinâmica”, “a vibração nocturna dos arsenais e dos estaleiros”.


Em França são Apollinaire, Blaise Cendrars e Valery Larbaud os poetas das fulgurações da mecânica, do automóvel, do paquete, do avião, da “respiration légère et facile des locomotives”. Mas o grande precursor de uns e de outros, como tal reconhecido por Marinetti, é Whitman, já influente a ponto de Henri Ghéon temer que o entusiasmo pelo “bárbaro” genial fizesse esquecer a tradição estética da poesia francesa. Será também Whitman o grande inspirador de Álvaro de Campos da segunda fase, aquele que realiza a intenção inicial de Pessoa: criar um poeta da vertigem das sensações modernas, da volúpia da imaginação, da energia explosiva.

"Avante! A estrada abre-se diante de nós,

é segura – eu experimentei-a – os meus próprios pés a experimentaram bem – não vos

detenhais!

Deixai que o papel fique na mesa por escrever, e o livro na estante por abrir.

Fique a ferramenta na oficina! fique o dinheiro por ganhar!

Fique a escola onde está! Cerrai ouvidos à voz do mestre!

Fique o pregador a pregar no seu púlpito! Fique o advogado a pleitar no tribunal, e o juiz a dissertar.

[sobre a lei!

Companheiro, dou-te a minha mão!

Dou-te o meu amor, mais preciso que o dinheiro, todo me dou eu mesmo a ti, em vez de

[ pregações ou de normas;

E tu, dar-te-ás a ti mesmo? Virás jornadear comigo?

Seguiremos sempre lado a lado por todo o tempo que vivermos?"


"Assim cantava Whitman na Canção da Estrada Larga. Falava, exortava, como um poeta de nova espécie. No seu coração cabiam todas as crenças, todos os saberes, todas as raças; identificava-se com a humanidade inteira, no sangue, no crime, na dor, na alegria, na piedade, no trabalho. As suas Leaves of Grass são a epopeia das multidões anónimas em marcha para um futuro melhor, sob o signo da camaradagem. Místico da matéria, estuante da alegria de viver em todas as dimensões, ensinava aos outros a beleza do que é. Inundava-o uma confiança cega nas forças divinas do Homem. Convidava todos à aventura maravilhosa de existirem integralmente, de viverem triunfalmente a vida. Campos, aliciado, como outros jovens europeus da sua geração, pela voz do novo Homero, aderiu à religião whitmaniano do Homem e da Terra:


"Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,

Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,

E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,

Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.

Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,

Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,

Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a rua do Ouro,

E, conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,

De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma."


"Após a descoberta do futurismo e de Whitman, Campos adoptou, além do verso livre, já usado pelo seu outro mestre Caeiro, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos versos de duas ou três linhas, anafórico, exclamativo, interjectivo, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes e enumerações de páginas e páginas, mas vivificado pela fantasia verbal perdulária, inexaurível.

Neste estilo vagabundo, vertiginoso, cantou ele ora a hipertrofia de uma personalidade viril que tudo integra em si e não respeita limites (“Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar, / E que há-de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!” ora os impulsos que emergem da lava sombria do inconsciente, o masoquismo, a volúpia sensual de ser objecto, vítima, a prostituição febril às máquinas, à Humanidade, ao mundo, ao ponto de se tornar “um monte confuso de forças”, um eu-Universo, disperso nas coisas mais díspares:


Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,

Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,

Todos os chamamentos obscenos de gestos e olhares

Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais."


"O poeta entrega-se num “vasto espasmo passivo”; a ânsia futurista, à Marinetti, de se roçar pelas máquinas respira lubricidade. Quando o seu amor da vida tem o matiz de fraterno, abrange num largo amplexo, como Whitman, o santo e a prostituta, o salteador e o matricida, a burguesinha e o pederasta, que passam em desfile promíscuo pelas estradas. Mas o que distingue Campos, mais que a euforia, é a raiva, o prazer sádico de imaginar cenas de piratas e naufrágios, a explosão de histerismo mental, “virado para dentro”, que não dura muito.

O Campos whitmaniano cantou a vida por bebedeira. As suas sensações desenfreadas, a sua emotividade pânica jamais passaram da esfera da inteligência: “Orgia intelectual de sentir a vida!” Intelectual, apesar do rótulo de sensacionista, a poesia de Campos é-o tanto como a de Caeiro. Justifica-a o desejo de afogar o tédio, de suprimir pela embriaguez a dor de viver, a “angústia no fundo de todos os prazeres””, a “saciedade antecipada na asa de todas as chávenas”.

Mesmo nos poemas vincadamente whitmanianos, amplas polifonias, há acordes dissonantes. Na “Ode Triunfal", quando, num crescendo raivoso, estava gritando o seu amor por todas as vidas anónimas e o desespero de não as devassar, abre um parêntese de nove versos para, num tom grave recolhido, reflectir sobre o mistério do mundo, a fatalidade da morte, a doçura triste da infância que não volta:


Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,

Pinheirais onde a minha infância era outra coisa

Do que eu sou hoje…"



"Fechado o parêntese, reaparece a “raiva mecânica”, a “obsessão movimentada dos ónibus”, a fúria de ir ao mesmo tempo nos comboios de toda a parte. Na “Ode Marítima”, o contraponto Whitman – Campos é ainda mais insistente. Ao ímpeto convulsivo do primeiro sucedem o arrependimento, a saudade, a brandura, a ternura cristã do português. De novo a recordação da infância feliz acorda no poeta “como uma lágrima”:


Era na velha casa sossegada, ao pé do rio…"

"Quando quer refazer o sonho cruento do pirata, tolhe-o um “remorso comovido e lacrimoso” pelas vítimas - nota de sensibilidade esporádica não só em Pessoa como nos vários heterónimos, e parece que relacionada ainda, porque de crianças se trata, com a nostalgia da infância:

"Lembro-me de que seria interessante

Enforcar os filhos à vista das mães

(Mas sinto-me sem querer as mães deles),

Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos

Levando os pais em barco até lá para verem"

"(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranquilo em casa)."


"A partir de 1916, Campos é o poeta do abatimento, da atonia, da aridez interior, do descontentamento de si e dos outros."


"Mal sei como conduzir-me na vida

Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

Se ao menos endoidecesse deveras!

Mas não: é este estar entre,

Este quase,

Este poder ser que…,

Isto"


"Decadente, não já no sentido histórico-literário da palavra, mas por se ter despenhado da exaltação heróica, nervosamente conseguida, dos longos poemas à Whitman. Longe de ser medularmente o “turbulent, fleshy and sensual” autor das Leaves of Grass, corre-lhe nas veias o sangue aguado de Pessoa; e a curva evolutiva da sua poesia mostra que o seu pretenso dinamismo é narcótico para afogar o tédio, bebedeira para transpor “o muro da sua lógica”, da sua inteligência “limitadora e gelada”.


“Meu Deus, tanto sono! ...” “Aproveitar o tempo! ... / Ah, deixem-me não aproveitar nada!”.


"O estilo ressente-se da modorra como das crises de histerismo. Atira desordenadamente ao papel desejos, pensamentos, imagens que lhe ocorrem, num estado de semi-inconsciência, à deriva. “Frases que só agora, no meio-sono, elaboro”. Brusco e opresso, as suas palavras são agora mais humanas, lateja nelas maior sinceridade.

Perante este Campos decaído, cosmopolita, melancólico, devaneador, irmão do Pessoa ortónimo no cepticismo, na dor de pensar e nas saudades da infância ou de qualquer coisa irreal, compreende-se que seja o único heterónimo que comparticipe da vida extraliterária de Fernando Pessoa.

Campos, desordenado, febril, ora nos surge na dependência da circunstância exterior, do estado dos nervos, das sensações do momento, ora mergulha em si próprio para sentir o terror do mistério de todas as coisas; em qualquer caso é o poeta da inspiração sem comando, da expressão solta e desleixada, dos hiatos da inteligência que organiza e clarifica. Pelo contrário, Pessoa, fiel a uma longa tradição estética, procede a uma estlilzação mais avançada da matéria lírica; transmite em versos musicais, densos, sóbrios, serenos, translúcidos, vivências subtis e dignas de recato. Distinção, aliás, que nem sempre se observa com a mesma nitidez."
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, 6ª edição, Lisboa, Editorial Verbo, pp. 57-66

Sobre a obra de Álvaro de Campos

“ (…) O romance-drama desta vida-obra considera assim duas “eras” no conto que Álvaro de Campos é feito ser: Antes de Caeiro de Depois de Caeiro – A.C e D.C….

A primeira (1913-1914) revela esse “ Poeta Decadente” que se nutria de cultura francesa (“Gostava de ter poemas e novelas / Publicadas por Plon e no Mercure”; diz, em “Opiário”) e se exprime num verso ainda obediente ao metro e à rima, embora com voluntárias e displicentes dissonâncias.

A era “Depois de Caeiro” corresponde ao resto da vida de Campos e do seu criador – porque significativamente morreram no mesmo ano.

Esta segunda “era” tem três grandes momentos: a do “Engenheiro Sensacionista” que o encontro com o Mestre Caeiro acordou (iniciaticamente) no poema decadentista e surará até ao poema “Lisbon Revisited” de 1923, a do “Engenheiro Metafísico” que irá até 1931, e a do Engenheiro Aposentado”, a última, até ao fim da obra-vida: 1935.

O “Engenheiro Sensacionista” revelar-se-á, sobretudo, através dessas “grandes odes” de que o “Engenheiro Aposentado” guarda a nostalgia. Além da “Ode Triunfal” e da “Ode Marítima”, outras odes mal e incompletamente conhecidas são por este Livro mais amplamente dadas a conhecer: “Saudação a Walt Whitman”, “Ode Marcial”, “A Passagem das Horas” e “A Partida” (…)

O “Engenheiro Metafísico”, apesar de escrever ainda em 1927 uma ode à maneira de “A partida”, em que, seguindo os ensinamentos de Caeiro, tenta aprender a morrer, “Ode Mortal” (inédita) afasta-se cada vez mais da lição do Mestre e vai perdendo o ritmo e o ímpeto das anteriores “cavalgadas”. É o período dos grandes poemas – “Tabacaria”, “Lisbon Revisited”, “Mestre, meu mestre querido”, “Ao volante do Chevrolet”, “Insónia”, “Aniversário”, a que acrescentaremos o inédito “Ode Mortal” – apesar de ter passado o tempo das “grandes odes”.

O último período, o do “Engenheiro Aposentado”, permite-nos assistir ao desistir dos planos, ao “deixar cahir os braços ao sol-pôr do esforço” desse judeu errante que escreveu os seus poemas como páginas do diário da sua errância interior. É a altura do “Regresso ao Lar” – assim intitula o soneto que previu para fechar o Livro.”

(Teresa Rita Lopes, Prefácio de Álvaro de Campos – Livro de Versos, ed. Crítica, 3ª ed., Lisboa, Referência/Ed. Estampa, 1997)


Fonte: Manual Entre Margens 12º ano, Porto Editora

Tópicos sobre a poética de Álvaro de Campos

      Para Campos (o mais moderno dos heterónimos de Fernando Pessoa), sentir é tudo e o seu desejo é “sentir tudo de todas as maneiras”. O sensacionismo torna a sensação a realidade da vida e a base da arte. O EU do poeta tenta integrar e unificar tudo o que tem ou teve existência ou possibilidade de existir.

Álvaro de Campos é quem melhor procura a totalização das sensações, mas sobretudo, das percepções conforme as sente, ou, como ele próprio afirma, “sentir tudo de todas as maneiras”.

O sensacionismo de Campos começa com a premissa de que a única realidade é a sensação. Mas a nova tecnologia na fábrica e nas ruas da metrópole moderna provoca-
-lhe a vontade de ultrapassar os limites das próprias sensações, numa vertigem insaciável.

Ao tentar a totalização de todas as possibilidades sensoriais e afectivas da humanidade, em todo o espaço, tempo ou circunstâncias, num mesmo processo psíquico individual, o sensacionismo faz o mesmo que o unanimismo francês (movimento poético do início do século XX que, em reacção contra o individualismo e as estéticas do descontínuo, procura criar laços entre os grupos humanos, interpretando a sua alma e a sua vida, acreditando na possibilidade de uma alma “unânime”, na solidariedade e na importância da colectividade para fazer face às situações reais e ameaçadoras da vida moderna).
      A obra de Álvaro de Campos passa por três fases:


- a decadentista – que exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações (“Opiário”); o decadentismo surge como uma atitude estética finissecular que exprime o tédio, o enfado, a náusea, o cansaço, o abatimento e a necessidade de novas sensações. Traduz a falta de um sentido para a vida e a necessidade de fuga à monotonia. Com rebuscamento, preciosismo, símbolos e imagens apresenta-se marcado pelo Romantismo e pelo Simbolismo.


- a futurista e sensacionista – nesta fase, Álvaro de Campos celebra o triunfo da máquina, da energia mecânica e da civilização moderna. Apresenta a beleza dos “maquinismos em fúria” e da força da máquina por oposição à beleza tradicionalmente concebida. Exalta o progresso técnico, essa “nova revelação metálica e dinâmica de Deus”. A “Ode Triunfal” ou a “Ode Marítima” são bem o exemplo desta intensidade e totalização das sensações.


- a intimista – que, perante a incapacidade das realizações, traz de volta o abatimento, que provoca “Um supremíssimo cansaço, / Íssimo, íssimo, íssimo, / Cansaço…”. Nesta fase, Campos sente-se vazio, um marginal, um incompreendido. Sofre fechado em si mesmo, angustiado e cansado. (“Esta velha angústia”; “Apontamento”; “Lisbon revisited”).

O drama de Álvaro de Campos concretiza-se num apelo dilacerante entre o amor do mundo e da humanidade; é uma espécie de frustração total feita de incapacidade de unificar em si pensamento e sentimento, mundo exterior e mundo interior. Revela, como Pessoa, a mesma inadaptação à existência e a mesma demissão da personalidade íntegra.

Campos busca, na linguagem poética, exprimir a energia ou a força que se manifesta na vida. Daí o surgimento de versos livres e muito longos, vigorosos, submetidos à expressão da sensibilidade, dos impulsos, das emoções (através de frases exclamativas, de apóstrofes, onomatopeias e oximoros).

Fonte: Preparação para a Prova de Exame Nacional -2003-12º ano, Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto Editora

Comentário sobre a escrita de Campos

"É o poeta cantor da vida moderna, das máquinas, da velocidade, da energia mecânica. Sente-se nos seus poemas uma atracção quase erótica pelas máquinas, símbolo da vida moderna. Há no poeta uma paixão visceral pela civilização moderna industrial: “Ah! não poder exprimir-me todo como um motor… ser completo como uma máquina!” Mas, a par desta paixão, há a náusea, a neurastenia provocada pela poluição física e moral da vida moderna: “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica / tenho febre e escrevo. / Escrevo rangendo os dentes…”


Álvaro de Campos aprende de Caeiro a urgência de sentir, mas não lhe basta a “sensação das coisas como são”. Ele precisa de “sentir tudo de todas as maneiras”, não se contenta senão com “sensações brutais”. Este desmedido sensacionismo de Campos vai dar origem ao seu estilo desmedido que constitui a maior rotura na literatura portuguesa e o ponto mais alto do Modernismo (Futurismo) em Portugal.


A “Ode Triunfal”, publicada no primeiro Orpheu e a “Ode Marítima”, publicada no segundo, quer pela violência das sensações à maneira do poeta inglês Whitman, quer pelo estilo escandalosamente novo, aparentemente desleixado, com uma grande irregularidade de estrofes e de versos (métrica), com uma imagética chocantemente arrojada, com enumerações caóticas, anáforas, aliterações e onomatopeias, constituem o ponto mais brilhante da poesia verdadeiramente futurista.


Álvaro de Campos é, como Cesário Verde, um poeta urbano. Como ele, embora de forma mais chocantemente futurista, focou a cidade e a sua multidão anónima e também o cansaço e o tédio de si mesmo.


Campos evoluciona, nos poemas, de uma euforia desmedida para uma imensa angústia que muitas vezes se exprime por meio de amargas ironias. Veja-se, por exemplo, a grande ironia que transparece no poema “Tabacaria”.


Toda a desordem de ritmos, toda a violência de metáforas e expressões, provêm do desespero de não poder meter nas palavras o tamanho das sensações. É o próprio Campos que afirma: “A emoção intensa não cabe na palavra: tem que baixar ao grito ou subir ao canto”.


Como conclusão e relacionando os três heterónimos estudados com Fernando Pessoa ortónimo, demos a palavra ao próprio Pessoa: “Pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida”. David Mourão Ferreira (in O Rosto e As Máscaras), comentando o texto citado de Pessoa, escreve: “Seja como for, nós poderemos encará-los (os heterónimos) sob uma outra perspectiva: Alberto Caeiro, desejando-se um simples homem da natureza, inteiramente desligado dos valores da cultura, pretendeu, sobretudo, ser; Álvaro de Campos, sem se mostrar tão radical na recusa dos valores culturais – mas contestando-os, afinal, de modo muito mais corrosivo – esforçou-se principalmente por sentir, em lúcida histeria, de acordo com os ritmos do mundo moderno; e Ricardo Reis, por seu turno, não mais desejou que viver segundo o ensinamento de todas as culturas, sinteticamente recolhidas numa sabedoria que vem de longe e que nem por isso deixa de ser pessoal. Em suma: uma arte de SER, uma arte de SENTIR, uma arte de VIVER”.
António Afonso Borregana, O Texto em Análise III

Álvaro de Campos

"Campos apresenta-se [em "Ode Triunfal"] logo de início como o vate da era industrial, da violência da vida e do expressionismo mais concreto. Virando as costas à antiguidade de que Reis é o grande apaixonado, ele pretende ser resolutamente moderno. À beleza apolínea ele, opõe a beleza dionisíaca, a que os surrealistas em breve chamarão "convulsiva". À suspensão do julgamento e à recusa de qualquer compromisso com o real, ele prefere o compromisso total no espaço e no tempo; ele quer "viver ao extremo", conhecer o "estado supremo da vertigem", e, acima de tudo - será essa a sua divisa -, "sentir tudo de todas as maneiras".

Robert Bréchon, Estranho Estrangeiro, Uma Biografia de Fernando Pessoa, Quetzal

Álvaro de Campos e Alberto Caeiro

"Álvaro de Campos retoma em Caeiro a urgência de sentir. Mas o Pessoa-Campos não lhe basta a "sensação das coisas como são". Álvaro de Campos precisa de "sentir tudo de todas as maneiras". [...] "Assim, [como nos diz Pessoa] aplica-se a sentir a cidade na mesma medida em que sente o campo, o normal como sente o anormal, o mal como sente o bem, o mórbido como sente o saudável. Nunca interroga, sente. É o filho indisciplinado da sensação."
Jorge Fazenda Lourenço, Fernando Pessoa, Ulisseia

sábado, 1 de janeiro de 2011

Excerto de texto apreciativo sobre a poesia de Campos

"[...] depois de 1916, Campos virá a ser o poeta do cansaço, da abulia, do vazio, inquieto e nauseado. O estilo ressente-se da modorra como das crises de histerismo. Atira desordenadamente ao papel desejos, pensamentos , imagens que lhe ocorrem, num estado de semi-inconsciência, à deriva.[..] Brusco e opresso, as suas palavras são agora mais humanas, lateja nelas maior sinceridade."

Fonte: Jacinto Prado Coelho, op. cit

Quadro-síntese das três fases da Álvaro de Campos

Campos decadentista
Campos futurista
Campos abúlico e pessimista
O canto do ópio
O desejo de um Além


O canto da civilização moderna
O desejo de sentir em excesso
A espiritualização da matéria e a materialização do espírito
O delírio sensorial
O sadomasoquismo


O pessimismo
A inadaptação à realidade
A angústia, o tédio, o cansaço
A nostalgia da infância
A dor de pensar

Fonte: Manual Ser em Português 12º ano, Areal Editores (adaptado)

Expressividade da linguagem em Campos

Expressividade da linguagem
Nível formal e fónico
 - poemas extensos e curtos;
- versos brancos e rimados;
- assonâncias, onomatopeias exageradas, aliterações ousadas;
- ritmo alternando entre momentos de linha crescente até atingir o acme e momentos de ritmo decrescente até quase à paragem;
- ritmo lento nos poemas pessimistas.

Nível morfossintáctico
- na fase futurista, excesso de expressão: enumerações exageradas, exclamações, interjeições variadas, versos formados apenas com verbos,  mistura de níveis de língua, estrangeirismos, neologismos, desvios sintácticos;
- na fase intimista, modera o nível de expressão, mas não abandona a tendência para o exagero.
Nível semântico
Apóstrofes, anáforas, personificações, hipérboles, oximoros, metáforas, polissíndetos.

Fonte: Manual Página Seguinte 12º ano, Texto Editores (adaptado)

Imagem que retrata a fase abúlica de Campos


E, Munch,O Grito, 1893
[Imagem do Google]
Caros alunos,
comentem esta imagem à luz da terceira fase de escrita de Campos.
 

  

Poema "Dactilografia"

"Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.

Outrora.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra ...

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Ergue a voz o tic-tacestalado das máquinas de escrever."

Fonte: Manual Entre Margens 12º ano, Porto Editora

Poema "Aniversário"

"No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!... "

Fonte: Manual Entre Margens 12º ano, Porto Editora

Imagem


[Imagem do Google]

Imagem de Fernando Pessoa






















[Imagem do Google]

Poema "Tabacaria"

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei que moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheco-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu."

Fonte: Manual Ser em Português 12º ano, Areal Editores


Imagem alusiva ao poema "Ode Triunfal"












A máquina chilreante, 1922
Museu de Arte Moderna, Nova Iorque


Fonte: Manual Ser em Português 12º ano, Areal Editores
Caros alunos,
descrevam a imagem e digam de que modo ela se pode relacionar com o poema que acabaram de estudar.


Imagem alusiva ao poema "Opiário"

 
 


António Dacosta, Não há sim sem não - O Eremita, 1985

Fonte: Manual Ser em Português 12º ano, Areal Editores
Caros alunos,
descrevam a imagem e digam de que modo ela se pode relacionar com o poema que acabaram de estudar.

Poema "Opiário"

"Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro


É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.

Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.

A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.

Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.

Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avòzinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.

Não posso estar em parte alguma. A minha
Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.

Pertenço a um género de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!
Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro.
Não fazer nada é a minha perdição.
Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que co'os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah que bom que era ir daqui de caída
Pra cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —
E basta de comédias na minh'alma!"

Fonte: Manual Página Seguinte, 12º ano, Texto Editores

Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro

"Lisboa, 13 de Janeiro de 1935

Meu prezado Camarada:


Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.

Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer cousa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica., que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. À parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe-Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.

Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da natureza de «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras cousas. E essas cousas pela mesma natureza do livro, a «Mensagem» não as inclui.

Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares prontos da «Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.

Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande – um livro de umas 350 páginas –, englobando as várias sub-personalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.

Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque essa faceta – em certo modo secundária – da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português, parte deste mesmo livro) – precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.

Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo – penso-o com tristeza – pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa., impuro e simples!

Creio que respondi à sua primeira pergunta.

Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!

Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e cousas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas cousas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as cousas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente – um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Cousas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho saudades deles.(Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar –, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.
Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer cousa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos – um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido – estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido –, diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!

Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É, um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.Como escrevo em nome desses três?... Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas cousas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso.)

Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.(*)

Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo. Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é Criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente – o que é facto – que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho.(**)

Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.

Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.

Fernando Pessoa

P. S. (!!!)

14-1-1935

Além da cópia que normalmente tiro para mim, quando escrevo à máquina, de qualquer carta que envolve explicações da ordem das que esta contém, tirei uma cópia suplementar, tanto para o caso de esta carta se extraviar, como para o de, possivelmente, ser-lhe precisa para qualquer outro fim. Essa cópia está sempre às suas ordens.

Outra cousa. Pode ser que, para qualquer estudo seu, ou outro fim análogo, o Casais Monteiro precise, no futuro, de citar qualquer passo desta carta. Fica desde já autorizado a fazê-lo, mas com uma reserva, e peço-lhe licença para lha acentuar. O parágrafo sobre ocultismo, na página 7 da minha carta, não pode ser reproduzido em letra impressa. Desejando responder o mais claramente possível à sua pergunta, saí propositadamente um pouco fora dos limites que são naturais nesta matéria.

Trata-se de uma carta particular, e por isso não hesitei em fazê-lo. Nada obsta a que leia esse parágrafo a quem quiser, desde que essa outra pessoa obedeça também ao critério de não reproduzir em letra impressa o que nesse parágrafo vai escrito. Creio que posso contar consigo para tal fim negativo.

Continuo em dívida para consigo da carta ultradevida sobre os seus últimos livros. Mantenho o que creio que lhe disse na minha carta anterior: quando agora (creio que será só em Fevereiro) passar alguns dias no Estoril, porei essa correspondência em ordem, pois estou em dívida, nessa matéria, não só para consigo, mas também com várias outras pessoas.

Ocorre-me perguntar de novo uma cousa que já lhe perguntei e a que me não respondeu: recebeu os meus folhetos de versos em inglês, que há tempos lhe enviei?

«Para meu governo», como se diz em linguagem comercial, pedia-lhe que me indicasse o mais depressa possível que recebeu esta carta. Obrigado.

Fernando Pessoa


(*): Esta carta, tal como foi inserida por Adolfo Casais Monteiro na revista Presença, n.º 9, Junho de 1937, e mais tarde por Jorge de Sena nas Páginas de Doutrina Estética, obr. cit., terminava aqui, em obediência ao Post Scriptum de Fernando Pessoa, que pedia a não publicação do trecho subsequente devido aos motivos que apontava e que se reproduzem. Contudo, com autorização de Casais Monteiro, João Gaspar Simões incluiu o referido trecho ocultista na sua Vida e Obra de Fernando Pessoa, obr. cit., pp. 546 e 547 (2.ª ed.). Transcreve-se o referido trecho na íntegra, bem como o P. S., que só figurava em Apêndice da antologia de Sena.


(**): Termina aqui o texto em questão, só conhecido depois do livro de J. Gaspar Simões.

Termina aqui el texto en cuestión, sólo conocido después del libro de J. Gaspar" Simões.
Fonte: Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa, ed. António Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986."

Caros alunos,
como é que se pode justificar a primeira fase de Campos através da leitura desta carta?
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