segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Comentário sobre a escrita de Campos

"É o poeta cantor da vida moderna, das máquinas, da velocidade, da energia mecânica. Sente-se nos seus poemas uma atracção quase erótica pelas máquinas, símbolo da vida moderna. Há no poeta uma paixão visceral pela civilização moderna industrial: “Ah! não poder exprimir-me todo como um motor… ser completo como uma máquina!” Mas, a par desta paixão, há a náusea, a neurastenia provocada pela poluição física e moral da vida moderna: “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica / tenho febre e escrevo. / Escrevo rangendo os dentes…”


Álvaro de Campos aprende de Caeiro a urgência de sentir, mas não lhe basta a “sensação das coisas como são”. Ele precisa de “sentir tudo de todas as maneiras”, não se contenta senão com “sensações brutais”. Este desmedido sensacionismo de Campos vai dar origem ao seu estilo desmedido que constitui a maior rotura na literatura portuguesa e o ponto mais alto do Modernismo (Futurismo) em Portugal.


A “Ode Triunfal”, publicada no primeiro Orpheu e a “Ode Marítima”, publicada no segundo, quer pela violência das sensações à maneira do poeta inglês Whitman, quer pelo estilo escandalosamente novo, aparentemente desleixado, com uma grande irregularidade de estrofes e de versos (métrica), com uma imagética chocantemente arrojada, com enumerações caóticas, anáforas, aliterações e onomatopeias, constituem o ponto mais brilhante da poesia verdadeiramente futurista.


Álvaro de Campos é, como Cesário Verde, um poeta urbano. Como ele, embora de forma mais chocantemente futurista, focou a cidade e a sua multidão anónima e também o cansaço e o tédio de si mesmo.


Campos evoluciona, nos poemas, de uma euforia desmedida para uma imensa angústia que muitas vezes se exprime por meio de amargas ironias. Veja-se, por exemplo, a grande ironia que transparece no poema “Tabacaria”.


Toda a desordem de ritmos, toda a violência de metáforas e expressões, provêm do desespero de não poder meter nas palavras o tamanho das sensações. É o próprio Campos que afirma: “A emoção intensa não cabe na palavra: tem que baixar ao grito ou subir ao canto”.


Como conclusão e relacionando os três heterónimos estudados com Fernando Pessoa ortónimo, demos a palavra ao próprio Pessoa: “Pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida”. David Mourão Ferreira (in O Rosto e As Máscaras), comentando o texto citado de Pessoa, escreve: “Seja como for, nós poderemos encará-los (os heterónimos) sob uma outra perspectiva: Alberto Caeiro, desejando-se um simples homem da natureza, inteiramente desligado dos valores da cultura, pretendeu, sobretudo, ser; Álvaro de Campos, sem se mostrar tão radical na recusa dos valores culturais – mas contestando-os, afinal, de modo muito mais corrosivo – esforçou-se principalmente por sentir, em lúcida histeria, de acordo com os ritmos do mundo moderno; e Ricardo Reis, por seu turno, não mais desejou que viver segundo o ensinamento de todas as culturas, sinteticamente recolhidas numa sabedoria que vem de longe e que nem por isso deixa de ser pessoal. Em suma: uma arte de SER, uma arte de SENTIR, uma arte de VIVER”.
António Afonso Borregana, O Texto em Análise III

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