quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Desafio/discussão

Apresente as suas ideias sobre os valores que estão subjacentes aos conhecimentos que definem a sociedade atual.

Fonte: Análise de poemas Fernando Pessoa Ortónimo e Heterónimos, Conceição Jacinto, Gabriela Lança, Porto Editora (adaptado)

A abulia e o tédio

"Álvaro de Campos caracteriza-se, essencialmente, nesta última fase, pela sua faceta anti-social (à maneira romântica), pelo desprezo pelo burguês, o lepidóptero, e pela renúncia à sociedade materialista, marcada por comportamentos  estereotipados, cujos valores caducos o poeta contesta, numa revolta veemente, assumindo-se como um dândi, sempre pronto a provocar, a chorar os seguidores da ordem estabelecida, causando escândalo. O poeta escreve, exprimindo a rejeição dos cânones estabelecidos.
Campos recusa a acção, não se insere no sistema social que o envolve e grita a sua diferença de uma forma pungente, reivindicando para si mesmo a condição daquele que "não nasceu para isso", aquele que tem consciência de que entre o seu "eu" e os outros existe um abismo intransponível.
[...]
Este heterónimo de Fernando Pessoa é amoral, isto é, situa-se para além daquilo que é moral ou imoral, geralmente, afasta-se dos seus semelhantes (a sua aproximação em relação aos outros deve-se, segundo Pessoa, ao seu desejo de proporcionar a si mesmo diferentes sensações).
A fluência jorrante, manifestada em versos tempestuosos, exprime muitas vezes, a dor de uma solidão assumida e desejada, um tédio imenso perante a vida, um cansaço atroz perante a existência.
As elocuções febris traduzem um cepticismo sem remédio e não excluem uma saudade viva da infância, de um  tempo anterior, em que o poeta sente ter tido um espaço, para sempre perdido.
[...]
Inadaptado em relação ao universo moderno que exaltou nas odes futuristas, Campos revela a solidão originada pela consciência da diferença e da sua assunção através de uma angústia existencial que "Transbordou da vasilha" e que lhe provoca "mal-estar a fazer-[lhe] pregas na alma!". O cansaço de existir enquanto ser fragmentado, a nostalgia de uma infância "feliz e[m que] ninguém estava morto", o tédio da própria vida consubstanciam-se no poema "Là-bas, je ne sais où..."
[...]
O tédio e o niilismo aproximam os poemas da última fase da produção poética de Álvaro de Campos da poesia ortónima. Encontramos agora um Campos dominado pelo cansaço (cf. poema "O que há em mim é sobretudo cansaço"), pela nostalgia da infância, tempo arquetípico e mítico da felicidade perdida que se opõe ao presente e à consciência da ausência de amor, ao sentimento de abandono e à tristeza profunda.
[...]
O pessimismo da fase abúlica de Álvaro de Campos culmina no tédio imenso e na náusea irremediável que provoca a existência do poeta, exilado da alegria sonhada da infância e agrilhoado no tempo presente, conotado com a perda e com a infelicidade."

Fonte: Análise de poemas Fernando Pessoa Ortónimo e Heterónimos, Conceição Jacinto, Gabriela Lança, Porto Editora

sábado, 20 de agosto de 2011

Excerto crítico

..."Como Pessoa, Campos apresenta-se como um corpo-alma errante, até dentro de si próprio, sem poiso, sem lar.[...]
A linguagem de Campos é, propositadamente, descoordenada, aos borbotões, sem continuidade lógica.[...]
Não podemos esquecer que um dos medos que perseguiu Pessoa toda a vida foi o da loucura.[...]
Campos teve, pois, esse papel: o de catarticamente viver os seus males e deles, assim o libertar.
Outra importante afinidade de Campos com Pessoa tem que ver com esse coração omnipresente na poesia do "engenheiro doido".
Na pessoa de Álvaro, Fernando cometeu todas as irreverências pessoais e políticas de que, na sua própria pessoa, se abstinha.[...]"

Fonte: Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Editorial Caminho

Poema "Esta velha angústia"

"Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.


Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?


Estala, coração de vidro pintado!"

Poema "O que há em mim é sobretudo cansaço"

    "O que há em mim é sobretudo cansaço — 
    Não disto nem daquilo, 
    Nem sequer de tudo ou de nada: 
    Cansaço assim mesmo, ele mesmo, 
    Cansaço. 
    A sutileza das sensações inúteis, 
    As paixões violentas por coisa nenhuma, 
    Os amores intensos por o suposto em alguém,  
    Essas coisas todas — 
    Essas e o que falta nelas eternamente —; 
    Tudo isso faz um cansaço, 
    Este cansaço, 
    Cansaço. 

    Há sem dúvida quem ame o infinito, 
    Há sem dúvida quem deseje o impossível, 
    Há sem dúvida quem não queira nada — 
    Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: 
    Porque eu amo infinitamente o finito, 
    Porque eu desejo impossivelmente o possível, 
    Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,  
    Ou até se não puder ser... 

    E o resultado? 
    Para eles a vida vivida ou sonhada,  
    Para eles o sonho sonhado ou vivido, 
    Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...  
    Para mim só um grande, um profundo, 
    E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,  
    Um supremíssimo cansaço,  
    Íssimno, íssimo, íssimo, 
    Cansaço..."

Poema "Estou Cansado"


"Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa."



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Poema "Não, não é cansaço..."

"Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que me estranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta -
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, veja
Confesso: é cansaço!..."

Poema "Bicarbonato de Soda"

"Súbita uma angústia...
Ah que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!

Uma angústia,
Uma desconsolação da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar no meu estômago
e na circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa o cérebro?

Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir...

Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas.
Perante a paisagem todas as paisagens,
Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconseqüência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas
abertas!
Que verão agradável dos outros!
Dêem-me de beber, que eu não tenho sede!"

Fonte: http://cfh.ufsc.br/~magno/bicarbonato.htm

Poema "Começo a conhecer-me. Não existo"

"Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos
no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato."

Álvaro de Campos, pormenor do mural de Almada Negreiros na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1958)


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Carta astral de Álvaro de Campos



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Excerto

" Com Caeiro fingimos que somos eternos, com Campos regressamos dos impossíveis sons imperiais para a aventura labiríntica do quotidiano moderno, com Reis encolhemos os ombros diante do Destino, compreendemos que o Fado não é uma canção triste mas a Tristeza feita verbo e com Mensagem sonhamos uma pátria de sonho para redimir a verdadeira."

 Eduardo Lourenço

Poema "Ode Triunfal"

"À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora, Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo! Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!


(…)
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a minha vista Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes -
Na minha mente turbulenta e encandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.


(…)
(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente. A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus. E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!


Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!


Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.


Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!


Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios. Eia! eia-hô! eia! Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!

Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!"

Fonte: Manual Entre Margens 12º ano, Porto Editora

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Oficina de escrita

Num texto expositivo-argumentativo que contenha entre 150 e 200 palavras e evocando a tua experiência de leitura, comenta a seguinte afirmação:
"Se a poesia de Álvaro de Campos é, em muitos casos, o lugar de encenação de um febril entusiasmo modernista (na mais literal acepção do termo), ela acaba também por conduzir a estados de espírito em que a desencanto e o tédio são dominantes (...)."

Carlos Reis (coord.), in Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, UA, 1990

Álvaro de Campos, análise global

"Engenheiro naval “franzino e civilizado”, o mais fecundo e versátil heterónimo de Fernando Pessoa, é também o mais nervoso e emotivo, por vezes até à histeria.

Com algumas composições iniciais que algo devem ao Decadentismo(“Opiário”,por exemplo), Álvaro de Campos é, sobretudo, o futurista da exaltação da energia até ao paroxismo, da velocidade e da força da civilização mecânica do futuro, patentes na “Ode Triunfal”, e o sensacionista que pretende “sentir tudo de todas as maneiras”, ultrapassar a fragmentaridade, numa “histeria de sensações”, seja em movimento centrífugo de busca do não-eu, seja numa concentração centrípeta de evocação da infância e do quotidiano, e atingir o Todo(“OdeMarítima”).

É uma fase eufórica, baseada numa concepção não aristotélica da arte, isto é, numa estética baseada na ideia de Força.

Sendo o heterónimo que revela uma nítida evolução, Álvaro de Campos surge-nos, numa última fase, como o poeta do cepticismo, da abulia perante o absurdo, da auto-análise, do cansaço, e da frustração, muito próximo de Pessoa ortónimo.

Fica-nos a sensação, lidas as Odes com atenção, que o sensacionismo foi uma “fuga para a frente”, uma tentativa antecipadamente tida como frustrada e frustrante, de vencer o tédio, matar o absurdo, decifrar o enigma da existência, ser todo e ter tudo. É altura de revermos a estrofe final da “Ode Marítima”e atentarmos nos extractos seguintes, entre muitos que poderíamos citar:


a) “Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho

Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro

Do comboio definitivo…

Quero neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,

Estar ainda um bocado agarrado à velha vida”.

(“Lá-bas, je ne sais où”)



b) “Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

(…)

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! ...”

(“Aniversário”)


O estilo de Álvaro de Campos futurista e sensacionista é nervoso, pujante, torrencial, de verso livre, os períodos são longos e a ordenação das palavras aparentemente caótica, com recurso frequentíssimo à repetição, à anáfora, à onomatopeia, à metáfora e à comparação. E tudo isto enriquecido por um universo simbólico e um jogo de conotações e ambiguidades altamente expressivos.

Na sua última fase, os períodos perdem o seu longo fôlego, a linguagem perde toda a sua violência e densidade, como seria de esperar."
Texto crítico
"Poeta sensacionista e por vezes escandaloso (qualificativos da carta de Pessoa a Casais Monteiro, já citada), Campos é o primeiro a retratar-se e a referir circunstâncias biográficas, o que reforça a simulação e daria ao próprio Fernando Pessoa estímulos para se manter na pele do heterónimo. Descreve-se “de monóculo e casaco exageradamente cintado”, “franzino e civilizado”, “pobre engenheiro preso / A sucessibilíssimas vistorias”. Escreve, febril, “à dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica”, ou, no seu cubículo, ouvindo o “tic-tac estalado das máquinas de escrever”.

Dos vários heterónimos é aquele que mais sensivelmente percorre uma curva evolutiva. Tem três fases: a do “Opiário”, poema com a data fictícia de 3-1914; a do futurismo whitmaniano, exuberantemente documentada na “Ode Triunfal” (4-1914), em “Dois excertos de odes” (30-6-1914), “Ode Marítima” (publicada no nº 2 do Orpheu, 1915), “Saudação a Walt Whitman” (11-6-1915) e “Passagem das Horas” (22-5-1916), para só episodicamente assomar em poemas posteriores; enfim, uma terceira fase a que chamarei pessoal por estar liberta de influências nítidas, desde “Casa branca nau preta” (11-10-1916) até 1935, no ano da morte de Pessoa.

O “Opiário”, com efeito, é um poema decadente. Pessoa escreveu-o de propósito para o nº 1 do Orpheu em Fevereiro ou Março de 1915 e datou-o de Março de 1913 para documentar, mistificando, uma primeira fase de Campos, ainda “em botão”. Campos tê-lo-ia concebido no decurso de uma viagem ao Oriente. Dedicado “ao Senhor Mário de Sá-Carneiro”, imita-lhe desde a nostalgia de além, a morbidez snob de um saturado da civilização, a embriaguez do ópio e dos sonhos de um Oriente que não há, o horror à vida, o realismo satírico de certas notações, até ao vocabulário entre precioso e vulgar, às imagens, aos símbolos, ao estilo confessional brusco, amimado e divagativo, ao ritmo dos decassílabos agrupados em quadras. “Era o que Pessoa pretendia, ao mesmo tempo que deixava transparecer aqui ou ali a personalidade latente de Campos: a fome de um mundo de sensações novas, as sangrentas “visões cadafalso”, o desejo de “ser as coisas fortes”, o ódio à honestidade burguesa, à douceur de moeurs, como ele dirá na “Ode Marítima”:


Pudesse a gente desprezar os outros

E, ainda que co’os cotovelos rotos,

Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!"


"Compreende-se que este Álvaro de Campos que desponta – o da segunda fase – com a sua vitalidade transbordante, o seu amor ao ar livre e ao belo feroz, venha a condenar a literatura decadente, planta de estufa corrompida, em cujos pecados, como o Fernando Pessoa ortónimo, incorreu: fá-lo-á ao defender uma estética aristotélica baseada não já na ideia de beleza, no conceito de agradável, em suma, na inteligência, mas sim na ideia de força, na emotividade individual pela qual o escritor subjuga os outros sem procurar captá-los pela razão.

Publicados na revista Athena em 1924, estes “Apontamentos para uma estética não aristotélica” esclarecem o que Álvaro de Campos já era, como poeta emotivo e sensacionista, em 1914. Grassava então, nos meios literários avançados, o entusiasmo por uma poesia que espelhasse a civilização industrial da época. Em França e na Itália, Marinetti divulgara a partir de 1909 os princípios basilares do futurismo: luta sem quartel às tradições, à cultura feita; exaltação dos instintos guerreiros; apologia de um novo Homem protótipo isento de sensibilidade, saudável, amoral, dominador, livre de todas as peias. Na arte, o futurismo daria pela cor, pelo som ou pela palavra “a própria sensação dinâmica”, “a vibração nocturna dos arsenais e dos estaleiros”.


Em França são Apollinaire, Blaise Cendrars e Valery Larbaud os poetas das fulgurações da mecânica, do automóvel, do paquete, do avião, da “respiration légère et facile des locomotives”. Mas o grande precursor de uns e de outros, como tal reconhecido por Marinetti, é Whitman, já influente a ponto de Henri Ghéon temer que o entusiasmo pelo “bárbaro” genial fizesse esquecer a tradição estética da poesia francesa. Será também Whitman o grande inspirador de Álvaro de Campos da segunda fase, aquele que realiza a intenção inicial de Pessoa: criar um poeta da vertigem das sensações modernas, da volúpia da imaginação, da energia explosiva.

"Avante! A estrada abre-se diante de nós,

é segura – eu experimentei-a – os meus próprios pés a experimentaram bem – não vos

detenhais!

Deixai que o papel fique na mesa por escrever, e o livro na estante por abrir.

Fique a ferramenta na oficina! fique o dinheiro por ganhar!

Fique a escola onde está! Cerrai ouvidos à voz do mestre!

Fique o pregador a pregar no seu púlpito! Fique o advogado a pleitar no tribunal, e o juiz a dissertar.

[sobre a lei!

Companheiro, dou-te a minha mão!

Dou-te o meu amor, mais preciso que o dinheiro, todo me dou eu mesmo a ti, em vez de

[ pregações ou de normas;

E tu, dar-te-ás a ti mesmo? Virás jornadear comigo?

Seguiremos sempre lado a lado por todo o tempo que vivermos?"


"Assim cantava Whitman na Canção da Estrada Larga. Falava, exortava, como um poeta de nova espécie. No seu coração cabiam todas as crenças, todos os saberes, todas as raças; identificava-se com a humanidade inteira, no sangue, no crime, na dor, na alegria, na piedade, no trabalho. As suas Leaves of Grass são a epopeia das multidões anónimas em marcha para um futuro melhor, sob o signo da camaradagem. Místico da matéria, estuante da alegria de viver em todas as dimensões, ensinava aos outros a beleza do que é. Inundava-o uma confiança cega nas forças divinas do Homem. Convidava todos à aventura maravilhosa de existirem integralmente, de viverem triunfalmente a vida. Campos, aliciado, como outros jovens europeus da sua geração, pela voz do novo Homero, aderiu à religião whitmaniano do Homem e da Terra:


"Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,

Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,

E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,

Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.

Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,

Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,

Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a rua do Ouro,

E, conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,

De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma."


"Após a descoberta do futurismo e de Whitman, Campos adoptou, além do verso livre, já usado pelo seu outro mestre Caeiro, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos versos de duas ou três linhas, anafórico, exclamativo, interjectivo, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes e enumerações de páginas e páginas, mas vivificado pela fantasia verbal perdulária, inexaurível.

Neste estilo vagabundo, vertiginoso, cantou ele ora a hipertrofia de uma personalidade viril que tudo integra em si e não respeita limites (“Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar, / E que há-de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!” ora os impulsos que emergem da lava sombria do inconsciente, o masoquismo, a volúpia sensual de ser objecto, vítima, a prostituição febril às máquinas, à Humanidade, ao mundo, ao ponto de se tornar “um monte confuso de forças”, um eu-Universo, disperso nas coisas mais díspares:


Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,

Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,

Todos os chamamentos obscenos de gestos e olhares

Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais."


"O poeta entrega-se num “vasto espasmo passivo”; a ânsia futurista, à Marinetti, de se roçar pelas máquinas respira lubricidade. Quando o seu amor da vida tem o matiz de fraterno, abrange num largo amplexo, como Whitman, o santo e a prostituta, o salteador e o matricida, a burguesinha e o pederasta, que passam em desfile promíscuo pelas estradas. Mas o que distingue Campos, mais que a euforia, é a raiva, o prazer sádico de imaginar cenas de piratas e naufrágios, a explosão de histerismo mental, “virado para dentro”, que não dura muito.

O Campos whitmaniano cantou a vida por bebedeira. As suas sensações desenfreadas, a sua emotividade pânica jamais passaram da esfera da inteligência: “Orgia intelectual de sentir a vida!” Intelectual, apesar do rótulo de sensacionista, a poesia de Campos é-o tanto como a de Caeiro. Justifica-a o desejo de afogar o tédio, de suprimir pela embriaguez a dor de viver, a “angústia no fundo de todos os prazeres””, a “saciedade antecipada na asa de todas as chávenas”.

Mesmo nos poemas vincadamente whitmanianos, amplas polifonias, há acordes dissonantes. Na “Ode Triunfal", quando, num crescendo raivoso, estava gritando o seu amor por todas as vidas anónimas e o desespero de não as devassar, abre um parêntese de nove versos para, num tom grave recolhido, reflectir sobre o mistério do mundo, a fatalidade da morte, a doçura triste da infância que não volta:


Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,

Pinheirais onde a minha infância era outra coisa

Do que eu sou hoje…"



"Fechado o parêntese, reaparece a “raiva mecânica”, a “obsessão movimentada dos ónibus”, a fúria de ir ao mesmo tempo nos comboios de toda a parte. Na “Ode Marítima”, o contraponto Whitman – Campos é ainda mais insistente. Ao ímpeto convulsivo do primeiro sucedem o arrependimento, a saudade, a brandura, a ternura cristã do português. De novo a recordação da infância feliz acorda no poeta “como uma lágrima”:


Era na velha casa sossegada, ao pé do rio…"

"Quando quer refazer o sonho cruento do pirata, tolhe-o um “remorso comovido e lacrimoso” pelas vítimas - nota de sensibilidade esporádica não só em Pessoa como nos vários heterónimos, e parece que relacionada ainda, porque de crianças se trata, com a nostalgia da infância:

"Lembro-me de que seria interessante

Enforcar os filhos à vista das mães

(Mas sinto-me sem querer as mães deles),

Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos

Levando os pais em barco até lá para verem"

"(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranquilo em casa)."


"A partir de 1916, Campos é o poeta do abatimento, da atonia, da aridez interior, do descontentamento de si e dos outros."


"Mal sei como conduzir-me na vida

Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

Se ao menos endoidecesse deveras!

Mas não: é este estar entre,

Este quase,

Este poder ser que…,

Isto"


"Decadente, não já no sentido histórico-literário da palavra, mas por se ter despenhado da exaltação heróica, nervosamente conseguida, dos longos poemas à Whitman. Longe de ser medularmente o “turbulent, fleshy and sensual” autor das Leaves of Grass, corre-lhe nas veias o sangue aguado de Pessoa; e a curva evolutiva da sua poesia mostra que o seu pretenso dinamismo é narcótico para afogar o tédio, bebedeira para transpor “o muro da sua lógica”, da sua inteligência “limitadora e gelada”.


“Meu Deus, tanto sono! ...” “Aproveitar o tempo! ... / Ah, deixem-me não aproveitar nada!”.


"O estilo ressente-se da modorra como das crises de histerismo. Atira desordenadamente ao papel desejos, pensamentos, imagens que lhe ocorrem, num estado de semi-inconsciência, à deriva. “Frases que só agora, no meio-sono, elaboro”. Brusco e opresso, as suas palavras são agora mais humanas, lateja nelas maior sinceridade.

Perante este Campos decaído, cosmopolita, melancólico, devaneador, irmão do Pessoa ortónimo no cepticismo, na dor de pensar e nas saudades da infância ou de qualquer coisa irreal, compreende-se que seja o único heterónimo que comparticipe da vida extraliterária de Fernando Pessoa.

Campos, desordenado, febril, ora nos surge na dependência da circunstância exterior, do estado dos nervos, das sensações do momento, ora mergulha em si próprio para sentir o terror do mistério de todas as coisas; em qualquer caso é o poeta da inspiração sem comando, da expressão solta e desleixada, dos hiatos da inteligência que organiza e clarifica. Pelo contrário, Pessoa, fiel a uma longa tradição estética, procede a uma estlilzação mais avançada da matéria lírica; transmite em versos musicais, densos, sóbrios, serenos, translúcidos, vivências subtis e dignas de recato. Distinção, aliás, que nem sempre se observa com a mesma nitidez."
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, 6ª edição, Lisboa, Editorial Verbo, pp. 57-66

Sobre a obra de Álvaro de Campos

“ (…) O romance-drama desta vida-obra considera assim duas “eras” no conto que Álvaro de Campos é feito ser: Antes de Caeiro de Depois de Caeiro – A.C e D.C….

A primeira (1913-1914) revela esse “ Poeta Decadente” que se nutria de cultura francesa (“Gostava de ter poemas e novelas / Publicadas por Plon e no Mercure”; diz, em “Opiário”) e se exprime num verso ainda obediente ao metro e à rima, embora com voluntárias e displicentes dissonâncias.

A era “Depois de Caeiro” corresponde ao resto da vida de Campos e do seu criador – porque significativamente morreram no mesmo ano.

Esta segunda “era” tem três grandes momentos: a do “Engenheiro Sensacionista” que o encontro com o Mestre Caeiro acordou (iniciaticamente) no poema decadentista e surará até ao poema “Lisbon Revisited” de 1923, a do “Engenheiro Metafísico” que irá até 1931, e a do Engenheiro Aposentado”, a última, até ao fim da obra-vida: 1935.

O “Engenheiro Sensacionista” revelar-se-á, sobretudo, através dessas “grandes odes” de que o “Engenheiro Aposentado” guarda a nostalgia. Além da “Ode Triunfal” e da “Ode Marítima”, outras odes mal e incompletamente conhecidas são por este Livro mais amplamente dadas a conhecer: “Saudação a Walt Whitman”, “Ode Marcial”, “A Passagem das Horas” e “A Partida” (…)

O “Engenheiro Metafísico”, apesar de escrever ainda em 1927 uma ode à maneira de “A partida”, em que, seguindo os ensinamentos de Caeiro, tenta aprender a morrer, “Ode Mortal” (inédita) afasta-se cada vez mais da lição do Mestre e vai perdendo o ritmo e o ímpeto das anteriores “cavalgadas”. É o período dos grandes poemas – “Tabacaria”, “Lisbon Revisited”, “Mestre, meu mestre querido”, “Ao volante do Chevrolet”, “Insónia”, “Aniversário”, a que acrescentaremos o inédito “Ode Mortal” – apesar de ter passado o tempo das “grandes odes”.

O último período, o do “Engenheiro Aposentado”, permite-nos assistir ao desistir dos planos, ao “deixar cahir os braços ao sol-pôr do esforço” desse judeu errante que escreveu os seus poemas como páginas do diário da sua errância interior. É a altura do “Regresso ao Lar” – assim intitula o soneto que previu para fechar o Livro.”

(Teresa Rita Lopes, Prefácio de Álvaro de Campos – Livro de Versos, ed. Crítica, 3ª ed., Lisboa, Referência/Ed. Estampa, 1997)


Fonte: Manual Entre Margens 12º ano, Porto Editora

Tópicos sobre a poética de Álvaro de Campos

      Para Campos (o mais moderno dos heterónimos de Fernando Pessoa), sentir é tudo e o seu desejo é “sentir tudo de todas as maneiras”. O sensacionismo torna a sensação a realidade da vida e a base da arte. O EU do poeta tenta integrar e unificar tudo o que tem ou teve existência ou possibilidade de existir.

Álvaro de Campos é quem melhor procura a totalização das sensações, mas sobretudo, das percepções conforme as sente, ou, como ele próprio afirma, “sentir tudo de todas as maneiras”.

O sensacionismo de Campos começa com a premissa de que a única realidade é a sensação. Mas a nova tecnologia na fábrica e nas ruas da metrópole moderna provoca-
-lhe a vontade de ultrapassar os limites das próprias sensações, numa vertigem insaciável.

Ao tentar a totalização de todas as possibilidades sensoriais e afectivas da humanidade, em todo o espaço, tempo ou circunstâncias, num mesmo processo psíquico individual, o sensacionismo faz o mesmo que o unanimismo francês (movimento poético do início do século XX que, em reacção contra o individualismo e as estéticas do descontínuo, procura criar laços entre os grupos humanos, interpretando a sua alma e a sua vida, acreditando na possibilidade de uma alma “unânime”, na solidariedade e na importância da colectividade para fazer face às situações reais e ameaçadoras da vida moderna).
      A obra de Álvaro de Campos passa por três fases:


- a decadentista – que exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações (“Opiário”); o decadentismo surge como uma atitude estética finissecular que exprime o tédio, o enfado, a náusea, o cansaço, o abatimento e a necessidade de novas sensações. Traduz a falta de um sentido para a vida e a necessidade de fuga à monotonia. Com rebuscamento, preciosismo, símbolos e imagens apresenta-se marcado pelo Romantismo e pelo Simbolismo.


- a futurista e sensacionista – nesta fase, Álvaro de Campos celebra o triunfo da máquina, da energia mecânica e da civilização moderna. Apresenta a beleza dos “maquinismos em fúria” e da força da máquina por oposição à beleza tradicionalmente concebida. Exalta o progresso técnico, essa “nova revelação metálica e dinâmica de Deus”. A “Ode Triunfal” ou a “Ode Marítima” são bem o exemplo desta intensidade e totalização das sensações.


- a intimista – que, perante a incapacidade das realizações, traz de volta o abatimento, que provoca “Um supremíssimo cansaço, / Íssimo, íssimo, íssimo, / Cansaço…”. Nesta fase, Campos sente-se vazio, um marginal, um incompreendido. Sofre fechado em si mesmo, angustiado e cansado. (“Esta velha angústia”; “Apontamento”; “Lisbon revisited”).

O drama de Álvaro de Campos concretiza-se num apelo dilacerante entre o amor do mundo e da humanidade; é uma espécie de frustração total feita de incapacidade de unificar em si pensamento e sentimento, mundo exterior e mundo interior. Revela, como Pessoa, a mesma inadaptação à existência e a mesma demissão da personalidade íntegra.

Campos busca, na linguagem poética, exprimir a energia ou a força que se manifesta na vida. Daí o surgimento de versos livres e muito longos, vigorosos, submetidos à expressão da sensibilidade, dos impulsos, das emoções (através de frases exclamativas, de apóstrofes, onomatopeias e oximoros).

Fonte: Preparação para a Prova de Exame Nacional -2003-12º ano, Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto Editora

Comentário sobre a escrita de Campos

"É o poeta cantor da vida moderna, das máquinas, da velocidade, da energia mecânica. Sente-se nos seus poemas uma atracção quase erótica pelas máquinas, símbolo da vida moderna. Há no poeta uma paixão visceral pela civilização moderna industrial: “Ah! não poder exprimir-me todo como um motor… ser completo como uma máquina!” Mas, a par desta paixão, há a náusea, a neurastenia provocada pela poluição física e moral da vida moderna: “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica / tenho febre e escrevo. / Escrevo rangendo os dentes…”


Álvaro de Campos aprende de Caeiro a urgência de sentir, mas não lhe basta a “sensação das coisas como são”. Ele precisa de “sentir tudo de todas as maneiras”, não se contenta senão com “sensações brutais”. Este desmedido sensacionismo de Campos vai dar origem ao seu estilo desmedido que constitui a maior rotura na literatura portuguesa e o ponto mais alto do Modernismo (Futurismo) em Portugal.


A “Ode Triunfal”, publicada no primeiro Orpheu e a “Ode Marítima”, publicada no segundo, quer pela violência das sensações à maneira do poeta inglês Whitman, quer pelo estilo escandalosamente novo, aparentemente desleixado, com uma grande irregularidade de estrofes e de versos (métrica), com uma imagética chocantemente arrojada, com enumerações caóticas, anáforas, aliterações e onomatopeias, constituem o ponto mais brilhante da poesia verdadeiramente futurista.


Álvaro de Campos é, como Cesário Verde, um poeta urbano. Como ele, embora de forma mais chocantemente futurista, focou a cidade e a sua multidão anónima e também o cansaço e o tédio de si mesmo.


Campos evoluciona, nos poemas, de uma euforia desmedida para uma imensa angústia que muitas vezes se exprime por meio de amargas ironias. Veja-se, por exemplo, a grande ironia que transparece no poema “Tabacaria”.


Toda a desordem de ritmos, toda a violência de metáforas e expressões, provêm do desespero de não poder meter nas palavras o tamanho das sensações. É o próprio Campos que afirma: “A emoção intensa não cabe na palavra: tem que baixar ao grito ou subir ao canto”.


Como conclusão e relacionando os três heterónimos estudados com Fernando Pessoa ortónimo, demos a palavra ao próprio Pessoa: “Pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida”. David Mourão Ferreira (in O Rosto e As Máscaras), comentando o texto citado de Pessoa, escreve: “Seja como for, nós poderemos encará-los (os heterónimos) sob uma outra perspectiva: Alberto Caeiro, desejando-se um simples homem da natureza, inteiramente desligado dos valores da cultura, pretendeu, sobretudo, ser; Álvaro de Campos, sem se mostrar tão radical na recusa dos valores culturais – mas contestando-os, afinal, de modo muito mais corrosivo – esforçou-se principalmente por sentir, em lúcida histeria, de acordo com os ritmos do mundo moderno; e Ricardo Reis, por seu turno, não mais desejou que viver segundo o ensinamento de todas as culturas, sinteticamente recolhidas numa sabedoria que vem de longe e que nem por isso deixa de ser pessoal. Em suma: uma arte de SER, uma arte de SENTIR, uma arte de VIVER”.
António Afonso Borregana, O Texto em Análise III

Álvaro de Campos

"Campos apresenta-se [em "Ode Triunfal"] logo de início como o vate da era industrial, da violência da vida e do expressionismo mais concreto. Virando as costas à antiguidade de que Reis é o grande apaixonado, ele pretende ser resolutamente moderno. À beleza apolínea ele, opõe a beleza dionisíaca, a que os surrealistas em breve chamarão "convulsiva". À suspensão do julgamento e à recusa de qualquer compromisso com o real, ele prefere o compromisso total no espaço e no tempo; ele quer "viver ao extremo", conhecer o "estado supremo da vertigem", e, acima de tudo - será essa a sua divisa -, "sentir tudo de todas as maneiras".

Robert Bréchon, Estranho Estrangeiro, Uma Biografia de Fernando Pessoa, Quetzal

Álvaro de Campos e Alberto Caeiro

"Álvaro de Campos retoma em Caeiro a urgência de sentir. Mas o Pessoa-Campos não lhe basta a "sensação das coisas como são". Álvaro de Campos precisa de "sentir tudo de todas as maneiras". [...] "Assim, [como nos diz Pessoa] aplica-se a sentir a cidade na mesma medida em que sente o campo, o normal como sente o anormal, o mal como sente o bem, o mórbido como sente o saudável. Nunca interroga, sente. É o filho indisciplinado da sensação."
Jorge Fazenda Lourenço, Fernando Pessoa, Ulisseia

sábado, 1 de janeiro de 2011

Excerto de texto apreciativo sobre a poesia de Campos

"[...] depois de 1916, Campos virá a ser o poeta do cansaço, da abulia, do vazio, inquieto e nauseado. O estilo ressente-se da modorra como das crises de histerismo. Atira desordenadamente ao papel desejos, pensamentos , imagens que lhe ocorrem, num estado de semi-inconsciência, à deriva.[..] Brusco e opresso, as suas palavras são agora mais humanas, lateja nelas maior sinceridade."

Fonte: Jacinto Prado Coelho, op. cit

Quadro-síntese das três fases da Álvaro de Campos

Campos decadentista
Campos futurista
Campos abúlico e pessimista
O canto do ópio
O desejo de um Além


O canto da civilização moderna
O desejo de sentir em excesso
A espiritualização da matéria e a materialização do espírito
O delírio sensorial
O sadomasoquismo


O pessimismo
A inadaptação à realidade
A angústia, o tédio, o cansaço
A nostalgia da infância
A dor de pensar

Fonte: Manual Ser em Português 12º ano, Areal Editores (adaptado)

Expressividade da linguagem em Campos

Expressividade da linguagem
Nível formal e fónico
 - poemas extensos e curtos;
- versos brancos e rimados;
- assonâncias, onomatopeias exageradas, aliterações ousadas;
- ritmo alternando entre momentos de linha crescente até atingir o acme e momentos de ritmo decrescente até quase à paragem;
- ritmo lento nos poemas pessimistas.

Nível morfossintáctico
- na fase futurista, excesso de expressão: enumerações exageradas, exclamações, interjeições variadas, versos formados apenas com verbos,  mistura de níveis de língua, estrangeirismos, neologismos, desvios sintácticos;
- na fase intimista, modera o nível de expressão, mas não abandona a tendência para o exagero.
Nível semântico
Apóstrofes, anáforas, personificações, hipérboles, oximoros, metáforas, polissíndetos.

Fonte: Manual Página Seguinte 12º ano, Texto Editores (adaptado)

Imagem que retrata a fase abúlica de Campos


E, Munch,O Grito, 1893
[Imagem do Google]
Caros alunos,
comentem esta imagem à luz da terceira fase de escrita de Campos.
 

  

Poema "Dactilografia"

"Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.

Outrora.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra ...

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Ergue a voz o tic-tacestalado das máquinas de escrever."

Fonte: Manual Entre Margens 12º ano, Porto Editora

Poema "Aniversário"

"No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!... "

Fonte: Manual Entre Margens 12º ano, Porto Editora

Imagem


[Imagem do Google]

Imagem de Fernando Pessoa






















[Imagem do Google]

Poema "Tabacaria"

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei que moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheco-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu."

Fonte: Manual Ser em Português 12º ano, Areal Editores