segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Álvaro de Campos, análise global

"Engenheiro naval “franzino e civilizado”, o mais fecundo e versátil heterónimo de Fernando Pessoa, é também o mais nervoso e emotivo, por vezes até à histeria.

Com algumas composições iniciais que algo devem ao Decadentismo(“Opiário”,por exemplo), Álvaro de Campos é, sobretudo, o futurista da exaltação da energia até ao paroxismo, da velocidade e da força da civilização mecânica do futuro, patentes na “Ode Triunfal”, e o sensacionista que pretende “sentir tudo de todas as maneiras”, ultrapassar a fragmentaridade, numa “histeria de sensações”, seja em movimento centrífugo de busca do não-eu, seja numa concentração centrípeta de evocação da infância e do quotidiano, e atingir o Todo(“OdeMarítima”).

É uma fase eufórica, baseada numa concepção não aristotélica da arte, isto é, numa estética baseada na ideia de Força.

Sendo o heterónimo que revela uma nítida evolução, Álvaro de Campos surge-nos, numa última fase, como o poeta do cepticismo, da abulia perante o absurdo, da auto-análise, do cansaço, e da frustração, muito próximo de Pessoa ortónimo.

Fica-nos a sensação, lidas as Odes com atenção, que o sensacionismo foi uma “fuga para a frente”, uma tentativa antecipadamente tida como frustrada e frustrante, de vencer o tédio, matar o absurdo, decifrar o enigma da existência, ser todo e ter tudo. É altura de revermos a estrofe final da “Ode Marítima”e atentarmos nos extractos seguintes, entre muitos que poderíamos citar:


a) “Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho

Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro

Do comboio definitivo…

Quero neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,

Estar ainda um bocado agarrado à velha vida”.

(“Lá-bas, je ne sais où”)



b) “Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

(…)

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! ...”

(“Aniversário”)


O estilo de Álvaro de Campos futurista e sensacionista é nervoso, pujante, torrencial, de verso livre, os períodos são longos e a ordenação das palavras aparentemente caótica, com recurso frequentíssimo à repetição, à anáfora, à onomatopeia, à metáfora e à comparação. E tudo isto enriquecido por um universo simbólico e um jogo de conotações e ambiguidades altamente expressivos.

Na sua última fase, os períodos perdem o seu longo fôlego, a linguagem perde toda a sua violência e densidade, como seria de esperar."
Texto crítico
"Poeta sensacionista e por vezes escandaloso (qualificativos da carta de Pessoa a Casais Monteiro, já citada), Campos é o primeiro a retratar-se e a referir circunstâncias biográficas, o que reforça a simulação e daria ao próprio Fernando Pessoa estímulos para se manter na pele do heterónimo. Descreve-se “de monóculo e casaco exageradamente cintado”, “franzino e civilizado”, “pobre engenheiro preso / A sucessibilíssimas vistorias”. Escreve, febril, “à dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica”, ou, no seu cubículo, ouvindo o “tic-tac estalado das máquinas de escrever”.

Dos vários heterónimos é aquele que mais sensivelmente percorre uma curva evolutiva. Tem três fases: a do “Opiário”, poema com a data fictícia de 3-1914; a do futurismo whitmaniano, exuberantemente documentada na “Ode Triunfal” (4-1914), em “Dois excertos de odes” (30-6-1914), “Ode Marítima” (publicada no nº 2 do Orpheu, 1915), “Saudação a Walt Whitman” (11-6-1915) e “Passagem das Horas” (22-5-1916), para só episodicamente assomar em poemas posteriores; enfim, uma terceira fase a que chamarei pessoal por estar liberta de influências nítidas, desde “Casa branca nau preta” (11-10-1916) até 1935, no ano da morte de Pessoa.

O “Opiário”, com efeito, é um poema decadente. Pessoa escreveu-o de propósito para o nº 1 do Orpheu em Fevereiro ou Março de 1915 e datou-o de Março de 1913 para documentar, mistificando, uma primeira fase de Campos, ainda “em botão”. Campos tê-lo-ia concebido no decurso de uma viagem ao Oriente. Dedicado “ao Senhor Mário de Sá-Carneiro”, imita-lhe desde a nostalgia de além, a morbidez snob de um saturado da civilização, a embriaguez do ópio e dos sonhos de um Oriente que não há, o horror à vida, o realismo satírico de certas notações, até ao vocabulário entre precioso e vulgar, às imagens, aos símbolos, ao estilo confessional brusco, amimado e divagativo, ao ritmo dos decassílabos agrupados em quadras. “Era o que Pessoa pretendia, ao mesmo tempo que deixava transparecer aqui ou ali a personalidade latente de Campos: a fome de um mundo de sensações novas, as sangrentas “visões cadafalso”, o desejo de “ser as coisas fortes”, o ódio à honestidade burguesa, à douceur de moeurs, como ele dirá na “Ode Marítima”:


Pudesse a gente desprezar os outros

E, ainda que co’os cotovelos rotos,

Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!"


"Compreende-se que este Álvaro de Campos que desponta – o da segunda fase – com a sua vitalidade transbordante, o seu amor ao ar livre e ao belo feroz, venha a condenar a literatura decadente, planta de estufa corrompida, em cujos pecados, como o Fernando Pessoa ortónimo, incorreu: fá-lo-á ao defender uma estética aristotélica baseada não já na ideia de beleza, no conceito de agradável, em suma, na inteligência, mas sim na ideia de força, na emotividade individual pela qual o escritor subjuga os outros sem procurar captá-los pela razão.

Publicados na revista Athena em 1924, estes “Apontamentos para uma estética não aristotélica” esclarecem o que Álvaro de Campos já era, como poeta emotivo e sensacionista, em 1914. Grassava então, nos meios literários avançados, o entusiasmo por uma poesia que espelhasse a civilização industrial da época. Em França e na Itália, Marinetti divulgara a partir de 1909 os princípios basilares do futurismo: luta sem quartel às tradições, à cultura feita; exaltação dos instintos guerreiros; apologia de um novo Homem protótipo isento de sensibilidade, saudável, amoral, dominador, livre de todas as peias. Na arte, o futurismo daria pela cor, pelo som ou pela palavra “a própria sensação dinâmica”, “a vibração nocturna dos arsenais e dos estaleiros”.


Em França são Apollinaire, Blaise Cendrars e Valery Larbaud os poetas das fulgurações da mecânica, do automóvel, do paquete, do avião, da “respiration légère et facile des locomotives”. Mas o grande precursor de uns e de outros, como tal reconhecido por Marinetti, é Whitman, já influente a ponto de Henri Ghéon temer que o entusiasmo pelo “bárbaro” genial fizesse esquecer a tradição estética da poesia francesa. Será também Whitman o grande inspirador de Álvaro de Campos da segunda fase, aquele que realiza a intenção inicial de Pessoa: criar um poeta da vertigem das sensações modernas, da volúpia da imaginação, da energia explosiva.

"Avante! A estrada abre-se diante de nós,

é segura – eu experimentei-a – os meus próprios pés a experimentaram bem – não vos

detenhais!

Deixai que o papel fique na mesa por escrever, e o livro na estante por abrir.

Fique a ferramenta na oficina! fique o dinheiro por ganhar!

Fique a escola onde está! Cerrai ouvidos à voz do mestre!

Fique o pregador a pregar no seu púlpito! Fique o advogado a pleitar no tribunal, e o juiz a dissertar.

[sobre a lei!

Companheiro, dou-te a minha mão!

Dou-te o meu amor, mais preciso que o dinheiro, todo me dou eu mesmo a ti, em vez de

[ pregações ou de normas;

E tu, dar-te-ás a ti mesmo? Virás jornadear comigo?

Seguiremos sempre lado a lado por todo o tempo que vivermos?"


"Assim cantava Whitman na Canção da Estrada Larga. Falava, exortava, como um poeta de nova espécie. No seu coração cabiam todas as crenças, todos os saberes, todas as raças; identificava-se com a humanidade inteira, no sangue, no crime, na dor, na alegria, na piedade, no trabalho. As suas Leaves of Grass são a epopeia das multidões anónimas em marcha para um futuro melhor, sob o signo da camaradagem. Místico da matéria, estuante da alegria de viver em todas as dimensões, ensinava aos outros a beleza do que é. Inundava-o uma confiança cega nas forças divinas do Homem. Convidava todos à aventura maravilhosa de existirem integralmente, de viverem triunfalmente a vida. Campos, aliciado, como outros jovens europeus da sua geração, pela voz do novo Homero, aderiu à religião whitmaniano do Homem e da Terra:


"Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,

Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,

E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,

Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.

Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,

Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,

Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a rua do Ouro,

E, conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,

De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma."


"Após a descoberta do futurismo e de Whitman, Campos adoptou, além do verso livre, já usado pelo seu outro mestre Caeiro, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos versos de duas ou três linhas, anafórico, exclamativo, interjectivo, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes e enumerações de páginas e páginas, mas vivificado pela fantasia verbal perdulária, inexaurível.

Neste estilo vagabundo, vertiginoso, cantou ele ora a hipertrofia de uma personalidade viril que tudo integra em si e não respeita limites (“Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar, / E que há-de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!” ora os impulsos que emergem da lava sombria do inconsciente, o masoquismo, a volúpia sensual de ser objecto, vítima, a prostituição febril às máquinas, à Humanidade, ao mundo, ao ponto de se tornar “um monte confuso de forças”, um eu-Universo, disperso nas coisas mais díspares:


Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,

Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,

Todos os chamamentos obscenos de gestos e olhares

Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais."


"O poeta entrega-se num “vasto espasmo passivo”; a ânsia futurista, à Marinetti, de se roçar pelas máquinas respira lubricidade. Quando o seu amor da vida tem o matiz de fraterno, abrange num largo amplexo, como Whitman, o santo e a prostituta, o salteador e o matricida, a burguesinha e o pederasta, que passam em desfile promíscuo pelas estradas. Mas o que distingue Campos, mais que a euforia, é a raiva, o prazer sádico de imaginar cenas de piratas e naufrágios, a explosão de histerismo mental, “virado para dentro”, que não dura muito.

O Campos whitmaniano cantou a vida por bebedeira. As suas sensações desenfreadas, a sua emotividade pânica jamais passaram da esfera da inteligência: “Orgia intelectual de sentir a vida!” Intelectual, apesar do rótulo de sensacionista, a poesia de Campos é-o tanto como a de Caeiro. Justifica-a o desejo de afogar o tédio, de suprimir pela embriaguez a dor de viver, a “angústia no fundo de todos os prazeres””, a “saciedade antecipada na asa de todas as chávenas”.

Mesmo nos poemas vincadamente whitmanianos, amplas polifonias, há acordes dissonantes. Na “Ode Triunfal", quando, num crescendo raivoso, estava gritando o seu amor por todas as vidas anónimas e o desespero de não as devassar, abre um parêntese de nove versos para, num tom grave recolhido, reflectir sobre o mistério do mundo, a fatalidade da morte, a doçura triste da infância que não volta:


Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,

Pinheirais onde a minha infância era outra coisa

Do que eu sou hoje…"



"Fechado o parêntese, reaparece a “raiva mecânica”, a “obsessão movimentada dos ónibus”, a fúria de ir ao mesmo tempo nos comboios de toda a parte. Na “Ode Marítima”, o contraponto Whitman – Campos é ainda mais insistente. Ao ímpeto convulsivo do primeiro sucedem o arrependimento, a saudade, a brandura, a ternura cristã do português. De novo a recordação da infância feliz acorda no poeta “como uma lágrima”:


Era na velha casa sossegada, ao pé do rio…"

"Quando quer refazer o sonho cruento do pirata, tolhe-o um “remorso comovido e lacrimoso” pelas vítimas - nota de sensibilidade esporádica não só em Pessoa como nos vários heterónimos, e parece que relacionada ainda, porque de crianças se trata, com a nostalgia da infância:

"Lembro-me de que seria interessante

Enforcar os filhos à vista das mães

(Mas sinto-me sem querer as mães deles),

Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos

Levando os pais em barco até lá para verem"

"(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranquilo em casa)."


"A partir de 1916, Campos é o poeta do abatimento, da atonia, da aridez interior, do descontentamento de si e dos outros."


"Mal sei como conduzir-me na vida

Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

Se ao menos endoidecesse deveras!

Mas não: é este estar entre,

Este quase,

Este poder ser que…,

Isto"


"Decadente, não já no sentido histórico-literário da palavra, mas por se ter despenhado da exaltação heróica, nervosamente conseguida, dos longos poemas à Whitman. Longe de ser medularmente o “turbulent, fleshy and sensual” autor das Leaves of Grass, corre-lhe nas veias o sangue aguado de Pessoa; e a curva evolutiva da sua poesia mostra que o seu pretenso dinamismo é narcótico para afogar o tédio, bebedeira para transpor “o muro da sua lógica”, da sua inteligência “limitadora e gelada”.


“Meu Deus, tanto sono! ...” “Aproveitar o tempo! ... / Ah, deixem-me não aproveitar nada!”.


"O estilo ressente-se da modorra como das crises de histerismo. Atira desordenadamente ao papel desejos, pensamentos, imagens que lhe ocorrem, num estado de semi-inconsciência, à deriva. “Frases que só agora, no meio-sono, elaboro”. Brusco e opresso, as suas palavras são agora mais humanas, lateja nelas maior sinceridade.

Perante este Campos decaído, cosmopolita, melancólico, devaneador, irmão do Pessoa ortónimo no cepticismo, na dor de pensar e nas saudades da infância ou de qualquer coisa irreal, compreende-se que seja o único heterónimo que comparticipe da vida extraliterária de Fernando Pessoa.

Campos, desordenado, febril, ora nos surge na dependência da circunstância exterior, do estado dos nervos, das sensações do momento, ora mergulha em si próprio para sentir o terror do mistério de todas as coisas; em qualquer caso é o poeta da inspiração sem comando, da expressão solta e desleixada, dos hiatos da inteligência que organiza e clarifica. Pelo contrário, Pessoa, fiel a uma longa tradição estética, procede a uma estlilzação mais avançada da matéria lírica; transmite em versos musicais, densos, sóbrios, serenos, translúcidos, vivências subtis e dignas de recato. Distinção, aliás, que nem sempre se observa com a mesma nitidez."
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, 6ª edição, Lisboa, Editorial Verbo, pp. 57-66

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